Letícia Dantas, membro do Serur Advogados
A discussão sobre a existência de demandas predatórias vem ganhando cada vez mais atenção do judiciário brasileiro, da Ordem dos Advogados e de todos os profissionais da área. No entanto, a definição e combate a tais práticas não são um consenso no meio, uma vez que alguns profissionais veem as medidas adotadas pelos tribunais e julgadores como uma limitação à prática da advocacia e do direito de ação. Nesse sentido, é preciso se aprofundar no tema e entender que, para que uma demanda seja considerada predatória ou temerária, há uma análise de diversos indícios.
A litigância predatória é caracterizada pelas chamadas “demandas de massa”, que consiste no ajuizamento de um grande numero de ações em um curto espaço de tempo, com iniciais genéricas, causas de pedir inverossímeis ou artificiais, procurações desatualizadas ou mesmo sem assinatura, e demais irregularidades documentais. Os autores são majoritariamente idosos, em idade avançada, com pouca instrução, analfabetos e indígenas. Não são raros os casos em que, no curso da ação, percebe-se que o autor não tinha ciência sequer do que se tratava a demanda, muitas vezes sendo procurado pelo próprio advogado, que aborda o autor, informando que ele faz jus ao recebimento de algum benefício ou que poderia reduzir os juros de algum empréstimo, mas na verdade a causa de pedir da ação em nada tem a ver com o que ficou acordado. Não são raras as ocasiões em que há constatação de pagamentos de acordo ou condenação ocorridos “post mortem”, em conta de titularidade do advogado, uma vez que o óbito nunca foi noticiado na ação e o processe seguiu seu rumo natural.
A exemplo disso, em julho do presente ano, o GAECO (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) do MPMS deflagrou a operação ARNAQUE, que teve como alvo duas organizações criminosas lideradas por advogados responsáveis pelo ajuizamento de mais de 70 mil ações, espalhadas por diversos Estados brasileiros. Durante as investigações, foi possível confirmar que os alvos dos criminosos eram pessoas idosas e vulneráveis. Estima-se que os bandidos conseguiram arrecadar cerca de 190 milhões de reais em 5 anos.
Infelizmente, tais práticas não são incomuns. O crescimento das demandas predatórias sobe a cada dia e os prejuízos ao sistema judicial do país são inúmeros. Dentre eles, o aumento no tempo de tramitação do processo, uma vez que o número de ações distribuídas sob falsas premissas alavanca consideravelmente o número total de processos distribuídos por comarca, contribuindo ainda mais pra um dos maiores problemas do sistema: falta de celeridade processual e duração razoável do processo, além do aumento de custos, uma vez que, na grande maioria desses ações, os autores são beneficiários da gratuidade da justiça.
Como resposta ao problema, os Tribunais vêm trabalhando junto com seus setores de tecnologia para criar e viabilizar métodos que contem com eficácia e maior agilidade na identificação e prevenção de tais demandas, para mitigar a situação e garantir, de fato, o amplo acesso à justiça àqueles que efetivamente precisam da tutela jurisdicional do Estado. Com o avanço da tecnologia e uso da inteligência artificial, o sistema ganhou um grande aliado. Isto porque, atualmente, parte dos tribunais do país, por meio dos seus centros de tecnologia e inovação, está engajada na criação e uso de ferramentas que utilizam a I.A. como forma de identificar e prevenir o ajuizamento dessas ações.
A exemplo do exposto, o Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins possui o seu próprio mecanismo de combate a tais práticas. Nomeada de “Tanatose” e em funcionamento desde março de 2022, a ferramenta foi idealizada e criada por dois servidores do Tribunal, e tem como principal objetivo, a partir da análise de dados extraídos dos processos, identificar pontos de semelhanças e compatibilidade entre eles, buscando identificar indícios que levem a casos de possíveis demandas predatórias de uma forma mais ágil, utilizando-se, para tanto, de Inteligência Artificial.
Seguindo a mesma linha, o Tribunal de Justiça de Pernambuco lançou, em outubro do presente ano, a sua ferramenta no combate às demandas de massa, nomeada de “Bastião”. A plataforma também contará com o uso de I.A. para identificação de volume de ações e compatibilidades entre as demandas, com a criação de um banco de dados e alertas em casos identificados. O principal intuito da plataforma parece ser identificar as demandas o mais cedo possível, permitindo, assim, um maior controle e maior efetividade na sua resolução.
A tendência é que cada tribunal do país, aos poucos, crie suas próprias ferramentas para enfrentar este grande desafio, que cada vez mais afeta o judiciário do país. A inteligência artificial, temida por muitos, vem como uma grande aliada na resolução dessa problemática, na medida em que traz agilidade na identificação e coleta informações imprescindíveis à análise e processamento de tais ações cada vez mais cedo, resultando em uma maior economia, celeridade e garantindo o acesso à justiça àqueles que de fato precisam e fazem jus a tutela jurisdicional do Estado.